Pandemia evidenciou a vulnerabilidade de quem vive em situação de rua
Apesar de o Brasil ter mais de 220 mil pessoas em situação de rua, esta população segue invisível para grande parte da sociedade e até mesmo para as autoridades. Apenas com o início da pandemia algumas cidades agiram para atender necessidades antigas, como a criação de banheiros públicos com pias e chuveiros.
Em todo o Brasil, 222 mil pessoas vivem em situação de rua. O dado levantado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indica um aumento de 140% no número de pessoas nestas condições entre 2012 e março de 2020. Com a pandemia de Covid-19, os números devem crescer ainda mais.
“O Estado não tem estrutura para lidar com o aumento da população em situação de rua”, afirma Sueli Oliveira, coordenadora nacional do Movimento População de Rua e Região Nordeste.
Ela reforça que a pandemia de Covid-19 evidenciou as diversas vulnerabilidades que envolvem a população em situação de rua.
“A realidade da rua é dura e não tem como se proteger de um vírus cujo potencial de contágio é alto. Só em 2020 algumas capitais conseguiram oferecer pias e banheiros para a população em situação de rua, apesar de ser uma demanda antiga. Mas, as opções ainda continuam as mesmas: lidar com os riscos na rua ou com o ‘isolamento’ coletivo nos abrigos”.
Para Aline Ramos, professora e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Saúde, Ambiente e Território (SAT) no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO), o cenário pandêmico deixou as contradições da sociedade mais evidentes.
“Como a situação de emergência na saúde pública é uma situação de crise, fica mais fácil de perceber este caráter higienista no trato da população em situação de rua. Quanto maior a quantidade de pessoas nas ruas, mais evidente é a forma como essa população é tratada”.
O estado de calamidade pública também não impediu a negligência contra quem vive nas ruas, principalmente nos últimos meses do ano passado.
Em outubro, o Ministério da Saúde precisou convocar veterinários para atender pessoas em situação de rua, e outros grupos vulneráveis, devido à recusa de médicos em atendê-los.
Em novembro de 2020, o caso de Carlos Eduardo Pires de Magalhães, de 40 anos, ganhou os noticiários. Em situação de rua há quatro anos na Zona Sul do Rio de Janeiro, ele entrou em uma padaria pedindo ajuda.
Carlos tinha tuberculose em estado grave e estava passando mal. Acabou morrendo na Confeitaria e Lanchonete Ipanema sem receber socorro. Seu corpo foi coberto por um saco preto por quase duas horas até que fosse retirado. Durante esse tempo, a padaria seguiu funcionando normalmente.
Ramos utiliza o conceito de Giorgio Agamben sobre tanatopolítica para explicar comportamentos nesta linha. De acordo com Agamben, ao longo da história sempre houve pessoas que são consideradas matáveis.
“Para ele, a morte dessas pessoas não é entendida como homicídio, ou seja, é uma morte sem significado político ou consequências jurídicas. Temos um exemplo histórico no Brasil sobre isso, sobre aquele assassinato do índio Galdino em Brasília. Quando questionado sobre o ato dele, o assassino disse algo como ‘pensei que fosse um morador de rua’, como se isso justificasse o fato de assassinar alguém ateando fogo, apenas porque o corpo estava ali na via pública”.
Ela reforça que a desumanização da pessoa em situação de rua sofre variações. “Vai desde o fato de serem invisibilizadas no cotidiano – as pessoas passam por elas sem interagir – até o extremo da sociedade achar que é normal que elas morram assassinadas. Embora haja esforços e iniciativas interessantes, o Brasil ainda lida muito mal com a população de rua. A forma de resolver o problema social é eliminando as pessoas que o evidenciam”.
Abrigos, repúblicas e o papel do acolhimento
A política dos Centros de Acolhimento, popularmente chamados de abrigos, surgiu ainda na década de 1990. Contudo, o modelo essencial há três décadas já não consegue atender a demanda de seu principal público.
Para Laura Salatino, coordenadora pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), que atua na defesa dos direitos jurídicos da população em situação de rua, a permanência do modelo é uma questão do legado da política pública.
“A proposta é que a pessoa comece ali para aos poucos passar para uma república e então para a moradia. É como uma escada. Temos a falsa impressão de que os equipamentos de acolhimento neste modelo são mais baratos, mas na verdade são bem mais caros que outros modelos”, aponta.
Um levantamento realizado pela pesquisadora e pós-graduanda em Gestão Pública pelo Insper Júlia Lima revelou que um centro de acolhida masculino custa em média R$ 965,16 por pessoa ao mês.
Apesar de ainda ser essencial, o serviço, que é gerido por organizações sociais conveniadas com a prefeitura, recebe diversas críticas da população em situação de rua.
Para Kelseny Medeiros, coordenadora da Clínica Luiz Gama, o próprio desenho do acolhimento causa conflito com o que deveria ser seu objetivo.
“Teve um caso que acompanhei de um senhor que estava em um abrigo e pela primeira vez, após anos, foi passar um final de semana com a filha. Quando ele voltou para o centro, foi impedido de entrar porque ficou três dias fora. Os vínculos deveriam ser incentivados, mas o sistema não considera isso”.
E completa: “Ali, às 22h tem que desligar as luzes. Não se pode preparar uma comida, convidar um amigo ou chamar o namorado(a). O abrigo não é para ser o lar da pessoa, mas impedir interações tão humanas apenas prejudica quem é atendido”.
Um pouco mais caro, outro modelo responde melhor as demandas de quem vive nas ruas. Os centros de acolhida do tipo ‘Autonomia em Foco’ permitem a privacidade e independência ao oferecerem quartos individualizados e a possibilidade de os usuários fazerem sua própria comida.
De acordo com a pesquisa, o serviço custa em média R$ 1.059,63 por mês por pessoa, mas o modelo, além de trazer mais benefícios, consegue respeitar a necessidade de isolamento.
Outro modelo que respeita a dignidade da pessoa em situação de rua e incentiva sua autonomia é a República. O acolhimento tem uma média de quatro pessoas por quarto, além da cozinha comunitária, e oferece suporte técnico. As repúblicas são o modelo mais barato, custando em média R$ 352,99 por pessoa mensalmente.
“Por que estamos insistindo neste modelo de acolhimento? Os abrigos exigem mais funcionários, recursos e segurança. É uma consequência do senso comum que cerca a população em situação de rua. Eles são enxergados como uma população que precisa ser tutelada, controlada, cuidada, que não consegue viver sozinha. Essa é a lógica por trás deste sistema”, argumenta Salatino.
As respostas da pandemia
De acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, a pandemia possibilitou que demandas antigas da população em situação de rua fossem consideradas.
“Os problemas de subsistência desta população ganharam evidência. A necessidade de banheiros públicos, com chuveiros e pias, foram conquistas históricas. A sociedade foi obrigada a olhar para isso, uma vez que orientações básicas podiam ser atendidas por quem vive nas ruas”, revela Carmen Santana, coordenadora do Projeto A Cor da Rua na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), iniciativa que busca formar lideranças comunitárias entre a população em situação de rua e oferecer atendimento para a saúde mental.
Para ela, o cenário só não foi ainda pior devido à existência de uma política pública anterior na Atenção Primária: os Consultórios na Rua. “Essa política evitou uma catástrofe ainda maior neste campo”.
Ainda assim, Santana aponta que os Consultórios na Rua não conseguem monitorar toda a população em situação de rua. Desta forma, o programa, que é a única fonte de dados sobre essa população em meio à Covid-19, entrega as informações já com subnotificação.
“Pessoas em situação de rua que foram para o pronto socorro ou que morreram nas ruas não foram devidamente contabilizadas. Não sabemos o quanto essa infecção afetou a população de rua porque não há transparência”, revela.
Uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) de 2015 indica que mais de 70% das pessoas em situação de rua que frequentam os Centros de Testagem e Aconselhamento (CTA) acessam a saúde por meio da Assistência Médica Ambulatorial (AMA) ou da Unidade Básica de Saúde (UBS).
“Tem muita gente em situação de rua que não é atendido pelo Consultório porque ele não está presente em todos os lugares. Em São Paulo, a região de Santo Amaro concentra um número considerável de pessoas em situação de rua, mas as equipes ficam nas regiões centrais, não nas periferias”, aponta Kelseny.
Saúde para quem?
Além dos obstáculos na saúde pública no aspecto clínico, a população em situação de rua ainda pode ser afetada pelo “revogaço” proposto pelo Governo.
Em dezembro de 2020, uma reportagem da Folha de S. Paulo revelou que o Ministério da Saúde pretende revogar uma série de portarias que compõem a estrutura da Política Nacional de Saúde Mental.
As mudanças previstas incluem alterações no financiamento do programa Consultório na Rua e que os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) fiquem restritos à reabilitação, além de extinguir os CAPS para usuários de drogas e álcool.
Para Kelseny Medeiros, coordenadora da Clínica Luiz Gama, a proposta atende ao lobby das Comunidades Terapêuticas (CTs), que vêm crescendo no país desde 2010 por meio do programa “Crack, é possível vencer”, do Governo Federal.
“As CTs atuam com um viés muito moralista. Para lidar com o uso de drogas, ignoram a técnica da redução de danos e forçam a abstinência e o isolamento. O modelo da comunidade terapêutica é uma retomada da lógica psiquiátrica do manicômio”, argumenta.
Em 2018, o Ipea traçou o perfil das CTs: 82% eram entidades vinculadas a igrejas e organizações religiosas, em grande parte, de matriz cristã; e mais de 90% utilizavam o cultivo da espiritualidade aliado ao trabalho no lugar do tratamento (laborterapia).
Ela argumenta que a população em situação de rua usuária de drogas tende a ser a imagem utilizada para fortalecer o modelo.
“Em São Paulo, quando assumiu a prefeitura, o João Doria (PSDB) [atual governador do estado] pediu a internação de todos os usuários da Cracolândia em Comunidades Terapêuticas. Felizmente, o judiciário impediu após reconhecer a violação em uma ação neste sentido”.
Para Marcelo Pedra, psicólogo sanitarista e pesquisador do Núcleo de Pesquisa sobre População em Situação de Rua da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Brasília, apesar da importância do trabalho de programas como o Consultório na Rua, os profissionais da saúde e da assistência social acabam atuando sob aspectos morais.
“No momento em que a pessoa fala sobre a droga, o profissional esquece toda a trajetória que envolve aquele ser humano e se limita a ofertas morais que não dialogam com as necessidades daquele indivíduo. A população em situação de rua precisa ser vista como qualquer outro brasileiro que precisa ter seus direitos garantidos”, afirma.
Ele cita como exemplo as tentativas de retorno para a família, quando na maior parte dos casos o ambiente familiar pode ser prejudicial.
“O ideal seria falar de drogas por outros caminhos. Quando se aborda a vida amorosa, educação ou saúde, a droga aparece de qualquer forma. Muitos já me falaram: ‘Eu tinha dez problemas, agora só tenho um. Vocês estão querendo que eu troque?’. As drogas são sintomas. É a solução que a pessoa conseguiu”.
Ele reforça que a população em situação de rua, usuária de drogas ou não, precisa ser ouvida. “A construção de políticas públicas ou do acolhimento só irá ter resultado se eles [quem vive nas ruas] forem considerados como sujeitos ativos. Quando algo é alheio ao que a pessoa vive, fica mais difícil que ela aceite”.
O respeito à pluralidade da população em situação de rua ainda é algo raro. Para a pesquisadora Aline Ramos, antes de questionar as motivações de uma pessoa para estar nesta condição, deve-se promover o respeito.
“Mais importante do que os motivos que levam as pessoas para as ruas – porque sempre haverá novos e velhos motivos – é garantir que o fato de estarem nas ruas não as desumanize e que essas pessoas tenham acesso à cidadania nos moldes que elas precisam e demandam”, aponta.
Texto replicado do Observatório do Terceiro Setor.
Sigam o SP invisível no Instagram, Facebook e Twitter.
Foto: Guilherme Gandolfi